E agora, Sr. Presidente?

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 15/03/2024)

(É por estas e por outras que tenho que trazer à ribalta muitos dos textos do Miguel Sousa Tavares. É dos poucos, com acesso à comunicação social de larga difusão, que tem a coragem de “chamar os bois pelos nomes”, como neste texto em que escalpeliza brilhantemente o papel de Marcelo Rebelo de Sousa, no derrube do Governo de António Costa e na consequente ascensão meteórica da extrema-direita. Por isso mesmo, a ilustração acima – da nossa escolha, e não constante na publicação original -, é uma alegoria à sua junção às vazias acusações do MP contra o Primeiro-ministro cessante.

Estátua de Sal, 15/03/2024)


E agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.


Como era mais do que previsível, acordámos segunda-feira com um país ingovernável. Era previsível para qualquer um, mas especialmente para alguém como Marcelo Rebelo de Sousa, que passou uma vida inteira a acumular fama e proveito como imbatível leitor e construtor de cenários políticos, capaz de ler nos astros o que o comum dos mortais ainda não tinha descortinado na parede em frente. Deixemo-nos, pois, de meias-palavras: Marcelo não tem desculpa. Estamos como estamos porque ele assim o quis.

No “Público”, e na esteira de vários outros, Manuel Carvalho escreveu que “o prenúncio desta degradante democracia liberal estava à vista quando uma maioria se extinguiu à luz dos indícios de corrupção”, pelo que “Marcelo fez o que a sua consciência lhe ditava e que o grosso da opinião publicada lhe exigia”. Pois, o problema é que o grosso da opi­nião publicada tomou por indícios de corrupção o que não leu com atenção ou não percebeu, e, no mais, um Presidente deve guiar-se por aquilo que, em cada momento, quer a opinião pública, e não a opinião publicada. Até porque, em contrário, há quem diga mesmo que foi Marcelo quem sugeriu a Lucília Gago que introduzisse no comunicado da Procuradoria-Geral da República o tal parágrafo que ambos sabiam que levaria à imediata demissão de António Costa. Eu não acompanho essa teoria da conspiração ou do maquiavelismo, mas continuo a perguntar-me o que se terá passado na conversa entre o Presidente e a procuradora-geral que antecedeu a demissão do primeiro-ministro: terá Marcelo exigido saber, como lhe competia, o que havia de sólido nas suspeitas em relação a António Costa? E, em face disso — que era nada, como concluiu o juiz de instrução —, conformou-se com a execução pública do PM às mãos da PGR e com a sua demissão? Isto feito, e mal feito, com que legitimidade constitucional optou por recusar o nome indicado por António Costa para lhe suceder na chefia do Governo ou, em alternativa, pedir ao PS que indicasse um nome, como se faz em todas as democracias normais? Quem disse a Marcelo que em 2022 os portugueses tinham votado apenas em António Costa, e não também no PS, e que, se por qualquer razão ele não terminasse o seu mandato, preferiam eleições antecipadas e desembocar na situação que temos agora? A que deve ele obediência: às suas inclinações partidárias, às suas interpretações políticas ou às regras da Constituição da República? E, já agora, para que lhe serviu a opinião de um Conselho de Estado rigorosamente dividido a meio sobre o caminho a seguir? Apenas para o desprestígio acrescido de ver dois dos conselheiros, por si nomeados e ligados à AD, votarem pela convocação de eleições e depois aparecerem a fazer campanha eleitoral pela mesma AD…

E agora, Sr. Presidente?

Não, Marcelo não tem desculpa. Trata-se de alguém que passou anos a defender o valor da estabilidade e da previsibilidade dos mandatos levados até ao fim. Que, nos últimos dois anos, disse e repetiu que nada poderia pôr em causa o ritmo de execução do PRR — a última grande oportunidade de financiar o desenvolvimento do país com dinheiros europeus —, chegando a dizer a uma ministra que não lhe perdoaria um só dia de atraso. E, afinal, manda tudo ao charco em duas penadas e cavalgando uma insustentável ficção processual do Ministério Público relativamente ao PM — que, isso sim, devia preocupá-lo, e muito. Interrompe uma governação antes ainda do meio do seu termo, paralisa o país durante meses, lançando o alerta em Bruxelas, e dá-se ao luxo de deitar borda fora aquilo que qualquer país europeu hoje mais preza: uma maioria absoluta de um partido dentro do sistema democrático. Hoje podíamos ter à frente do Governo alguém como Mário Centeno, o nome que António Costa levou a Marcelo e que este recusou: alguém que nem sequer era filiado no PS, que conhecia o Governo e as finanças, que tinha provas dadas aqui, conhecimento e prestígio lá fora. O país não teria parado, o PRR e os principais dossiês não estariam paralisados e, sobretudo, aqueles que ainda se esforçam por acreditar num futuro para Portugal não experimentariam mais uma vez a decepção de ver a vida a andar para trás, a sua e a de Portugal, porque lá em cima se anda a brincar com coisas sérias para satisfação de protagonismos ou de impulsos infantis.

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Mas não é apenas a instabilidade governativa que eu não perdoo a Marcelo. Mais ainda do que isso, o que não lhe perdoo é ter soltado a besta presa na cave, a besta da demagogia: o Chega. Por mais análises que me forneçam sobre as razões sociológicas e políticas do milhão e cem mil votos do Chega, algumas certamente pertinentes, há uma que desde logo o justifica: a compra de votos. O Chega comprou votos, comprou muitos votos, e comprou-os com uma campanha de demagogia despudorada e irresponsável. Contem-nos: nas forças policiais e respectivas famílias são 100 mil; nos reformados, a quem prometeu, pelo menos, uma pensão equivalente ao salário mínimo, mesmo para quem não contribuiu, serão uns 300 mil; nos professores, a quem prometeu tudo o que reclamam, dos 120 mil terão cativado uns 30 mil; nos agricultores outro tanto, e por aí fora, tudo junto somando metade do milhão e cem mil votos de André Ventura. Num país onde tantos se habituaram a exigir tudo do Estado e tão poucos se perguntam quem e como pagará, o discurso de Ventura está condenado ao sucesso, muito mais do que o racismo, a xenofobia, o autoritarismo e tudo o resto a que, por preguiça, gostam de o reduzir. O sucesso eleitoral de André Ventura chama-se demagogia à solta, e o pior de tudo é que, por competição e por sobrevivência, ele contagiou em larga medida todos os outros. Como aqui escrevi há duas semanas, o rol de promessas eleitorais, associado à conjuntura internacional, torna Portugal ingovernável: ou porque não serão cumpridas e serão então cobradas nas ruas e nos serviços públicos, ou porque serão cumpridas e nos levarão à falência.

Quando recusou a solução de estabilidade governativa que o país esperava e que ele próprio tinha apregoado durante tanto tempo, preferindo antes lançar o país numa aventura eleitoral desnecessária e de efeito previsível, Marcelo sabia ao que ia. Mas não se conteve, porque há muito que ele ia dando sinais de incontinência, aliás com ameaças explícitas. E não venham cá com o desgaste dos “casos e casinhos”, porque no mais grave deles — o caso Galamba, onde Marcelo entrou em choque frontal com o PM, exigindo publicamente a demissão do ministro — ainda estou para perceber qual é a responsabilidade de um ministro que demite um assessor que se recusou a entregar uns documentos exigidos por uma Comissão Parlamentar de Inquérito e depois, sem mais qualquer intervenção da sua parte, vê o assessor invadir à força o gabinete, roubar o computador de serviço e levá-lo para casa, só o devolvendo a um agente do SIS e por intervenção de outro membro do Governo. Mas, ainda que a razão fosse os “casos e casinhos”, a renovação do Governo com a indigitação de outro PM, e exterior ao PS, esvaziava o argumento.

Não, a verdade é outra: o cargo deve ser profundamente aborrecido para quem gosta de viver a vida. O primeiro mandato presidencial acredito até que possa ser estimulante e apelativo: andar por aí a conhecer o país e as pessoas, dar beijos e abraços, ser recebido com a despreocupação de quem só pode prometer o bem e não fazer o mal, viajar lá fora e conhecer os grandes do mundo, escutar o hino com a herança de quase nove séculos às costas. Mas, isto passado, o segundo mandato é mais do mesmo e, sendo o tédio mau conselheiro, a tendência para a asneira torna-se inevitável. Mas nenhum resiste à tentação do segundo mandato, nem mesmo alguém como Mário Soares, que tinha tão mais vida do que aquela que cabia nas paredes de Belém. No primeiro mandato vimos o melhor de Marcelo, um contagian­te suspiro de alívio depois dos anos de chumbo da majestade cavaquista; no segundo, estamos a assistir ao seu pior, à facilidade com que os grandes princípios degeneram numa absoluta vacuidade. Prejudicial ao país. Mas, enquanto o tempo não passa e isto não tem fim, fica a pergunta a que só ele tem obrigação de responder: e agora, Sr. Presidente, como é que nos tira desta embrulhada onde nos meteu? Dia 15 de Março, sexta-feira, cinco dias depois do acto eleitoral, ainda nem sequer sabemos quem ganhou as eleições e se quem ganhou quer mesmo governar.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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5 pensamentos sobre “E agora, Sr. Presidente?

  1. O que mais acho engraçado sem ter graça nenhuma é ver gente a afadigar se para nos tentar convencer que nao foi por racismo, xenófobia e gosto pelo autoritarismo a tempo da Outra Senhora que um em cada cinco portugueses votaram na extrema direita.
    E compreende se. Tantos anos a papaguear que o bom é solidário povo português era imune a esse fenómeno que varria os frios povos do Norte e Centro Europeu. Tantos anos a dizer que o povo português não e racista.
    Devo ser so eu que tenho azar. Deve ser só a muita gente que conheço que tem azar. Porque o que ouvimos é mesmo, porque estes pretos, estes indianos, esta gente de turbante, estes malandros dos ciganos a viver do rendimento mínimo. Esta palhaçada em que nao há respeito por nada. A polícia não pode fazer nada porque os juízes, poem os malandros na rua, em menos de nada estao cá fora.
    Acredito que houve gente que votou por acreditar nas promessas do Chega. Mas esses foram a ínfima minoria. Muitos deles votaram mesmo porque “ele diz as verdades”. Sobre ciganos, sobre imigrantes, sobre igualdade de género “porque a natureza é a natureza”.
    Se calhar foi por preguiça que não conseguimos encontrar um chegano que dissesse que votou por acreditar que a sua miserável reforma vai aumentar.
    Na segunda feira muita gente acordou para um povo que não conhecia. A ideia de um povo de brandos costumes desfeita em pedaços. Custa a engolir mas esta e a verdade e não há outra.
    Quanto ao papel do Presidente da República concordo, foi o pior possível. Mas só quem não conheceu o seu percurso desde o tempo em que, jovem estudante, defendia porrada forte e feia em quem se opunha a guerra colonial pode ficar surpreendido.
    Estamos metidos numa alhada de todo o tamanho? Estamos. Mas se não olharmos a nossa realidade de frente vamos afundar nos cada vez, mais.
    Como é que se ultrapassa o racismo, a xenófobia, o gosto pelo autoritarismo e se cultiva a solidariedade também não sei. Mad tapando o Sol com a peneira também não chegamos a lado nenhum.

  2. Se:
    a) A Constituição nos diz que é devida a presunção de inocência a qualquer cidadão até que uma sentença sobre si recaída tenha o respetivo trânsito em julgado;
    b) Se sobre António Costa não recaía qualquer sentença condenatória com trânsito em julgado, não fora o mesmo objeto de qualquer acusação e nem, sequer, constituído arguido tinha sido;
    c) Se António Costa sempre afirmou sentir-se de consciência tranquila;
    d) Se um líder do PSD, a propósisto das suspeições havidas sobre a legalidade da construção de uma sua casa, de líder achou por bem não deixar de ser e agora se prepara para ser PM, sem que haja, pelos vistos, quaisquer constrangimentos por causa dessas suspeições;
    d) Se António Costa, tido como político experiente, não poderia deixar de admitir que Marcelo, perante o seu pedido de demissão, convocaria eleições antecipadas, com todo o «cenário» que está á vista;
    Por que carga de água, então, apresentou o seu pedido de demissão, quando, até, ele próprio não aceitara o de um João Galamba? A ser o tal «parágrafo» que levou ao seu pedido de demissão uma conspiração da direita, com o conluio do MP, como há quem sugira, por que não enfrentou, então, corajosamente essa conspiração, nela vendo mais uma razão para não se demitir? Por a sua «dignidade política» estar à frente dos interesses do país?

    • Quem sabe do convento, é quem está lá dentro.
      A. Costa sabia da bosta em que estava metido. As maiorias geram ditaduras sem escrúpulos. Pode ser “esperto”, ladino, “inteligente”, mas não aparenta ser um líder.
      O que me espanta, foi o POVO que ele tratou abaixo de cão na negociata das “vacinas”, na mascarada e na “pandemia” de trazer por casa, lhe tenha dada a maioria.
      Intrigante.
      Como bom Rato saiu na primeira oportunidade. Tem amigos, há-de ter um poleiro de oiro para cantar de galo. Mainatos como o D. Barroso fazem falta em todas as organizações, nem que seja para servirem cafés.

  3. Foi um golpe de estado!Marcelo está a mais,tal como o”falecido”Cavaco.Arrangemos lugar para eles num mausoléu fora do Panteão Nacional,até lá façam voto de silencio.

  4. Negociatas das vacinas todos fizeram e toda a gente tratou de fazer bulling sobre a população para irem dar aquela porcaria. E quem não sabe devia saber.
    No Leste europeu a malta foi ameaçada com multas e o raio que o parta e muita gente não queria mesmo ir dar aquela porcaria e foi dito que era herança do comunismo a malta não querer fazer nada do que o Governo mandava. Não foi mesmo por gente que viu os sistemas de saúde desmoronar e que tem de pagar tudo com língua de palmo desconfiar agora de uma coisa de graça. Ou por estarem mais esclarecidos que a carneirada que aqui correu para os centros de vacinação.
    Um desses carneiros fui eu mais por querer a minha liberdade de volta do que por acreditar nos muitos benefícios e poucos riscos de um meimendro feito a pressa e com tecnologia pouco usada e com resultados medíocres para não dizer pior.
    Para ter sonos assassinos a Biden, esquecimento de tudo e confusão mental que já via desde Alzheimer precoce a cancro no cérebro. A acabar a conta anemia perniciosa que me custou 18 quilos e tirou a vontade de chamar peixe espada subdesenvolvido a alguém.
    Mas mesmo assim ainda bem que esta trapalhada acontecer com o Costa e não com o Coelho ou o Montenegro. Ou os ordenados teriam descido para metade e outras aleivosias semelhantes.
    O Costa saiu mas propôs outros nomes. Quem estava interessado em levar os afilhados de volta ao poder é que não quis.
    A CMTV é a CNN brindaram nos todo o mes de Novembro com escutas que nada provavam mas os comentadores logo interpretavam, SIC e TVI seguiam o mesmo caminho muito pelas bocas sem contraditório de Pequeno Mendes e Paulinho das Feiras.
    Foi um golpe de Estado a brasileira que resultou em pleno. E se Costa não term saído tinha resultado melhor ainda. Que Governo poderia continuar com aquele bombardeamento televisivo e até a oposição de direita e grupos arregimentados via Facebook ganhando as ruas?
    A nossa ingenuidade foi pensar que o que acontecia num país que víamos como ums República das Bananas com “uma realidade diferente”, a sério que ouvi disso como se se estivesse a falar de extra terrestres não podia acontecer aqui. Podia e aconteceu.

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